Respeitem meus cabelo brankus

Neste dia especial 25 de julho, Dia da Mulher Negra Latino Americana e Caribenha, Dia de Tereza de Benguela eu gostaria de trazer uma ponta de reflexão sobe aquilo que tem sido considerado a primeira representação de todo o infortúnio de uma mulher negra perante a sociedade ocidental.
O que hoje é simbolo de luta do lado de cá do Atlântico, na Terra Mãe, sempre foi símbolo de ligação fora das esferas humanas de perceber e viver a vida.
Não é possível falar de cabelos, tranças e toda a contribuição africana sem entrarmos em história e toda a pluralidade estética do continente africano.
Muito anterior a Kemet (Antigo Egito) as filosofias africanas nos trazem a percepção de que cada detalhe daquilo que somos é o que faz de nós seres únicos no universo, portanto, obra do altíssimo.
Toda essa pluralidade que engloba nossos corpos e a relação com o meio ambiente, fazem do continente africano um território de múltiplas formas de expressão quase que integralmente ligadas à espiritualidade.
Existem etnias para as quais a conexão com o sagrado é tão importante que as esculturas capilares são modeladas para cima como forma de manter essa conexão com o altíssimo mais próxima.
Os cabelos sempre foram entendidos como elementos divinos assim como nosso corpo por inteiro.
Essa ideia de termos nascido como seres espirituais faz parte dessas filosofias que conduzem as práticas cotidianas.
Não se sabe ao certo a datação do surgimento das tranças, mas o primeiro artefato encontrado com a representação deste penteado foi a Vênus de Willendorf (Áustria) que tem datação estimada de 22.000 a.e.c.
A riqueza de criatividade era tamanha que estas sociedades se utilizavam destes penteados para expressar status social, grupo étnico, estado civil, rituais de iniciação e vários outros significados. Os penteados eram elaborados por pessoas mais velhas, familiares ou amigos íntimos e não existia remuneração para tal. Podiam levar horas e até dias para a finalização. Este verdadeiro ritual acabava por reforçar laços entre as gerações.
Trazendo a questão para terras brasileiras, é preciso aprofundar o olhar sobre os processos históricos pelos quais o país passou para entender como se desenvolveu o apagamento e esvaziamento das culturas africanas no Brasil.
Trazidas para as Américas, pessoas eram capturadas sequestradas de sua Terra mãe e levadas para terras onde eram despidas de sua cultura, espiritualidade e língua perdendo totalmente sua referência de humanidade.
De acordo com a percepção europeia sobre corpos negros nós sempre estivemos muito próximos da animalização e hiper sexualização calçando o pensamento racista da época. Éramos considerados como um povo sem cultura e nem alma.
Nossos traços são fortes demais, lábios grossos, narinas largas. Nossos cabelos eram classificados como lanosos e nossos corpos grandes, mas resistentes a dor, aptos para a força de trabalho e reprodução.

Após a abolição, sem direito nenhum à algum tipo de reparação, pretos pobres foram abandonados a própria sorte instaurando um grande problema social.
Existia uma grande preocupação da elite brasileira em como apagar a presença negra do país tornando-o sólido e promissor já que a ideia de uma população massivamente negra era amplamente rejeitada e negativamente teorizada pelas comunidades intelectual e cientifica.
Pouco a pouco foi construído no imaginário coletivo a ideia de que tudo o que poderia ser associado a palavra “negro” era co relacionado a coisas ruins.
Sujeira, violência, feiura, miséria, doença, desordem, morte, roubo, maldade…
A sensação de não lugar e violência de todos os tipos contra nós foi e é constante.
Com o passar dos tempos foram desenvolvidas várias formulas para manipular quimicamente nossos fios impelindo a uma estética que nunca nos contemplou e, gradativamente, pretos e podres na tentativa de fugir dos estereótipos criados por uma sociedade eurocêntrica, foram aderindo a essas modificações.
As políticas higienista e eugenista foram disseminadas dando a ideia de que o problema de raça estaria resolvido no Brasil após a chegada da imigração europeia trazidos ao país recebendo recursos do governo como terras e cotas em universidades (Lei do Boi) para ali permanecerem, fixarem residência e constituírem famílias miscigenadas.
Estimava-se que em 100 anos não haveria mais pessoas negras no Brasil, já que figurávamos todo o tipo de imagem negativa. Esse era o projeto político.
Era corriqueiro ver anúncios de jornais com propagandas de produtos que sugeriam poder “remover” a sujeira de nossas peles, alisar nossos cabelos deixando explicito que “ser natural” não caberia a essa sociedade, negando-nos acessos primordiais à qualquer cidadão.
Geração pós geração fomos sendo desconectados através deste apagamento histórico usando para isso, todo o tipo de recurso que mascarasse ou atenuasse nossa descendência africana.
Lembro de, até alguns anos atrás, escutar de parentes mais velhos que eu e meus primos deveríamos nos esforçar para “branquear” a família garantindo melhor posição social através de descendentes mais claros e com cabelos menos crespos que os nossos.
Você, por acaso, já escutou…
“Alise este cabelo para conseguir um emprego.”
“Alise este cabelo para conseguir um namorado.”
Quantas outras frases você rememora relacionada a sua “inadequação” estética?
Mulheres negras eram tidas como corpos para o trabalho ou uso sexual sem nunca serem dignas de afeto, abrindo mais uma chaga proveniente deste processo de desumanização.
A solidão da mulher negra.
Você consegue perceber o processo de auto ódio registrado como brasa em nossos corpos?
Eu, no alto dos meus quarenta anos, levei trinta e sete até entender que não é certo e nem justo comigo precisar passar por um processo de descaracterização para atender demandas de uma sociedade que, na tentativa de continuar mantendo privilégios, viola o direito mais básico de uma ser humano. O direito de ser!

Não é justo ver minha mãe (advogada, secretária, professora e ex servidora pública) passar por um processo de perda de auto estima e baixa emocional por queda capilar motivada por stress em plena pandemia, rezando para conseguir alisar os fios novamente. Sentindo-se insegura, feia e diminuída quando precisou aparecer em uma audiência com os fios naturais ainda em crescimento.
Entendermos como este processo histórico influenciou gerações e trava uma verdadeira batalha interna dentro de nós mesmos é vital para o auto amor, auto respeito e um primeiro passo em direção a retomada do suleamento de nós mesmos e consequente autonomia em direção ao futuro.
Não houve interesse em apresentar qualquer mérito em relação aos feitos e contribuições das populações africanas neste país. Estamos na língua, religiosidade, culinária, arte, arquitetura, medicina, matemática, agricultura, navegação, teatro, filosofia, escrita, astronomia e muitas outras coisas.
Descendemos literalmente de reis e rainhas.
Descendemos de impérios inteiros que criaram boa parte do que conhecemos hoje, mas isso ninguém conta.
Reverenciemos isso.
Lembro-me agora de um provérbio africano que diz:
“Nunca é tarde para voltar ao passado e apanhar o que ficou atrás.”
Nanda Ferreira
Material de consulta
Instagram @rafabraids
Njeri, Aza e Aziza Dandara – Entre a Fumaça e a Cinza: Estado de Maafa pela perspectiva Mulherismo Africana e a Psicologia Africana. Produção acadêmica de Pós Doutoramento. 06/2020.

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